quinta-feira, 11 de maio de 2023

Capítulo II

CAPÍTULO II 

De repente na Pátria alheia 

É com adolescentes que duram certo número de anos que a vida faz os velhos. 
Marcel Proust Le Temps Retrouvé 

Quando viajo para bem longe é que me sinto mais perto de mim, das minhas inexploradas origens. Remonto as nascentes de um rio que flui sem saber para onde, no traço da sua itinerante fantasia. Do alto do avião se vê bem como os rios inventam seus caminhos; e raramente improvisam. Seu curso caprichoso na baixada, seu festival de curvas na calmaria dos brejos não era bem assim na serra de onde veio; ali ele só tem um caminho para passar. Não é à toa que aquele escritor francês diz: o patriotismo é o que a gente lembra da infância. Minha pátria são árvores enormes. As pessoas sucederam-se como quem rende a guarda e nem todas eram amenas e repousantes. Uma alameda de areia e folhas secas, os paralelos do trem que enche a noite de bufos e chiados, o canto (não o coaxar nem o trilo) dos sapos e dos grilos, a zoada das cigarras num coral de mil 14 mártires fritando em grelhas gigantescas; e o rumor manso do rio que passa mas às vezes, engrossado pela cheia, levava o corpo do gado morto, pedaços de casas, fragmentos de mundo. Minha pátria são cheiros e sons, são cores ora vivas ora desbotadas, monólogos de melancolia logo espantada por inopinados encontros. De repente na pátria alheia descubro um pormenor da minha que me espreita e me agarra no seu abraço. Encontrei-a certa vez numa cesta de mangas no rubro portal que leva ao Taj Mahal. Outra vez encontreia num sorvete nas vizinhanças do círculo polar ártico, mas quando estive em Lulea o que havia era uma triste orquestrazinha muito afinada no jantar do hotel bem-comportado. O que logo me transportou à galinha clorotica do jantar hidrotermal de Araxá, onde o violoncelista me explicou que fora dono da mais elegante loja de moda masculina da capital e naquela estância acabava seus dias roçando, num violoncelo estival, o arco choroso da Serenata de Toselli. Estamos recém-casados passeando na alameda de areia grossa e folhas secas, no chão da chácara. De repente Letícia corre para cima, escala depressa tantos degraus, eu vou devagar até entender o que se passa e finalmente alcanço-a no alto do prédio. A moça improvisada em ama descera um instante e o menino, nosso primeiro menino, veio engatinhando até a beira da escada, onde o balaústre largo dá passagem a qualquer criança daquele tamanho. 16 Letícia sobe correndo três andares, chega a tempo e o toma nos braços como se pela segunda vez lhe desse a vida. Ali, por aquela mesma fresta, caiu meu cachorrinho e ficou cego no tombo, andava pela sala até esbarrar no rodapé, voltava, andava de novo e batia com a cabeça no rodapé oposto. Que adianta criança chorar por cachorrinho cego? O tempo passou; agora, como sabe a mãe, na alameda da chácara, que a criança está chegando à beira da escada, no terceiro andar do prédio? Hoje mesmo vou ver essa escada, da qual retiraram os corrimões para reformá-los. A passagem dos pedreiros com seus tijolos raspou a beira dos degraus e os marcou, profundamente. Nunca mais será a mesma da qual caiu meu filhote de cachorro que ficou cego e não caiu meu filhote de gente porque a mãe, lá de baixo, adivinhou que a sua criatura estava a caminho da fresta do balaústre. Que meios são utilizados nesse tipo de comunicação? Se ainda não os descobriram será motivo para negá-los? E se os afirmamos, como poderíamos conciliá-los com a idéia de um mundo apenas material? De que matéria se fazem os sonhos? Quem poderia acreditar, ainda, que se fazem somente de digestões malfeitas e bebedeiras mal curtidas? São apenas repressões? Então por que nos dão ora a sensação de que nos oprimem ora a certeza de que nos libertam, como os encontros não explicitamente previstos, 17 os episódios aparentemente não programados? Como se chega a fabricar segredos como a abelha faz o mel e o passarinho joão-de-barro a sua casa com a abertura de costas para o vento? De que imponderáveis materiais se tecem os nossos pressentimentos? Meu filho Sebastião mal conhecia essa chácara que tem o nome de seu bisavô, que é o seu. Já homem feito e pai veio a conhecê-la, apaixonou-se de repente por ela e foi tratá-la com um amor cuidadoso, como se encontrasse lembranças que lhe foram transferidas, incorporadas à sua experiência, ao seu sonho. Quando me veio a idéia de escrever este livro, ele já fizera para si mesmo algumas das fotos que aqui figuram. A mancha rubra no chão, projetada do vidro vermelho da bandeira da janela. O trançado inextricável das raízes sobre o estreito fosso escavado pelas enxurradas; essas raízes são artérias, é a terra da chácara que mostra sua tessitura mais íntima, o subterrâneo tecido sobre o qual assentam os troncos. No topo alçam-se os ramos de encontro ao azul do céu. A foto da luz projetada no chão, como a das raízes emaranhadas que ligam dois trechos de terra sobre uma valeta cavada pelas águas, corresponde exatamente a momentos da minha infância, na casa do meu Avô. Nunca falei disto a ninguém, nem mesmo a meus filhos; os filhos tardam a descobrir que seus pais também tiveram pais, 18 estes tendem a se tornar remotos até que o tempo nos iguala, a todos. Quantas vezes me abaixei sobre estas raízes para ver como eram, como se embaralhavam e se confundiam, misterioso sistema de nervos e veias de uma terra toda plantada, lustrosa e rebrilhante. Outras cenas as fotos já não podem reproduzir, pois os móveis se foram, e as pessoas que os usavam. A xícara grande, toda dourada, de beiras recortadas que o Zé Cipriano chamava de "tiotê", nome emprestado de uns ferros que, dizia ele, serviam para as mulheres encrespar os cabelos - foi quando aprendi que elas queimavam os cabelos e sofriam para ser belas -, já não está pendurada, com tantas outras, nos ganchos parafusados sob as prateleiras do imenso armário da sala de jantar. Só o armário ficou, e um aparador muito leve sobre o qual pousava uma leiteira branca ao lado de um açucareiro de metal prateado; e uma fruteira de louça, em bicos, que nunca se esvaziava, coroada de carambolas. Nem rincha mais junto às janelas o carro de bois do Norberto, filho do Juca Rosa, com a cabeçorra das reses aflorando para nos espiar na hora do almoço, que meu Avô presidia. Mas o Norberto, pessoalmente, inda outro dia encontrei, apenas embranquecido o cabelo, sua pele escura, seu bom sorriso de antigamente; eis um momento devolvido. Sua presença me deu a ilusão de que tudo poderia voltar. Surpreendente 19 que seja, a idéia não me pareceu boa. Basta que tudo tenha sido. Nada de repetições, a vida é incessante e insaciável. E depois, tão rápida! A própria solidão agora é outra. Recusa povoar-se apenas de lembranças, prossegue a sua ronda, incorpora constantemente outras sensações, outras experiências. Disseram na minha frente, a uma mulher, que devia escrever memórias e ela perguntou: "Já?" E hoje no banho pensei: O tempo que resta é pouco; logo, é preciso escolher. Escrever memórias para quê, se mal temos tempo de gastá-las? Dá idéia de alguém que não podendo viajar coleciona cartões-postais. A cada idade suas decepções. E a todas, suas ansiedades. Deixar a cada fase, que digo, a cada dia da vida o desengano que lhe é próprio - e a suave alegria de lhes sobreviver. De vez em quando vou àquela casa, agora, e cada vez mais me convenço de que é impossível reconstituir sequer uma parte ínfima do que se viveu num rumo cronológico, metódico. Tudo se emaranha, as épocas, as pessoas, as nossas próprias reações. E isto nos livra de julgar em causa própria - bem como nos deixa livres para assistir à metamorfose da surpresa em rotina. Tudo perde tanto que não dá para evocar devidamente seja o que for. Como mais ou menos disse Jacques Maritain, quem quiser verdadeiramente estudar o homem primitivo não adianta muito procurá-lo nos aborígines da Austrália ou nos pigmeus da África, nos 20 comedores de formiga, nas tribos prediletas da insaciável antropóloga Margareth Mead - nosso debate no mar Egeu, quando ela se apoiava numa filha encantadora e num bastão de feiticeira da Tasmânia! - ou nos índios estudados pelo meu amigo Egon Z. Vogt, estudante de zacateca e amigo dos índios Huapi, no deserto do Arizona. Há que procurá-los em nós mesmos. Os primitivos que sobrevivem nessas tribos remotas são descendentes dos que adoeceram, dos que não foram capazes de evoluir. São os primitivos, degenerados. Nós somos os primitivos que puderam evoluir - salvo engano. Pelos padrões usuais, bem-sucedidos. Aqui estamos. Somos, modéstia à parte, os seus descendentes. O homem do começo está em nós. Tinham razão a antogenia e a filogenia. Transportamos em nós a infância da espécie - e a nossa própria infância. Sob um telheiro repleto de vasos de plantas meu Avô me contou que no colégio ele juntava níqueis para comprar três vinténs de capilé. Eu então sabia o que era capilé; hoje tive que ver no dicionário, só sei que era um refresco antigo, adocicado, provavelmente enjoativo, mas meu Avô criança adorava; quando me contou dessas compras que fazia parecia ter ainda no beiço o gosto do capilé. Depois me contou que certo dia, creio que era ministro da Viação, no começo do século, ia de tílburi pela avenida do Mangue, pensou até que estava enganado mas afinal teve certeza de que era seu 21 filho Maurício o menino que ia pela calçada com uma vara no ombro e na ponta da vara uma trouxinha de roupa, tal qual nas vinhetas do romantismo - como depois vi tantas delas. Saltou e meteu no tílburi o filho que interpelado confessou estar fugindo do internato onde a tia metera aquele órfão de mãe. Graças a essa história que meu Avô me contou pude obter um desfecho menos dramático para minha respectiva fuga do internato em que também me meteram, em cuja fachada havia esta inscrição latina que muito me impressionou: Hic Anima Pabulum Habeatis. Aqui temos o pão do espírito, creio que dizia. A visão dos telhados de São Cristóvão, debaixo dos quais dormia tanta gente que me parecia livre, decidiu-me à fuga. Simplesmente, uma tarde, saí pelo portão afora. Desci a rua, entrei no bonde, saltei no centro da cidade cheia de vendedores ambulantes e lojas ruidosas, frenéticas e amontoadas. Comprei um cachimbo e uma navalha, aparentemente desnecessários pois não fumava e era imberbe. Fui procurar o Ruy meu colega que morava com a mãe modista num sobrado da rua Uruguaiana. As meninas todas costuravam, muito sossegadas, canários emudecidos na meia-luz. Dali parti para a casa da chácara de meu Avô, vazia desde a sua morte. Fui num banco de pau da segunda classe do trem. O administrador da chácara, o Belo, estranhou minha chegada em pleno ano letivo, mas logo se habituou. 22 Passamos vários serões, ele me instruindo com suas histórias do interior, das montanhas, eu tratando de deslumbrá-lo com histórias que supunha eruditas. Até que meu pai, depois de procurar nos hospitais, no necrotério e na delegacia, não sei por que - ou sei? - desconfiou que me encontraria na chácara e mandou um telegrama imperativo. O Belo comprou duas passagens, também de segunda, e me escoltou até a casa do largo, em Botafogo, onde então a gente morava com minha avó materna. Meu pai encrespado começou a gritar comigo e eu comecei a gritar com ele, separados pela mesa na sala de jantar. O susto era recíproco. Ele tinha medo desse passado de repente ressurrecto no filho, eu pavor dessa espécie de orfandade que me tornava parte de um rebanho refugado. Creio que temíamos, um no outro, o que tinha cada um de igual ao outro. No momento culminante do nosso acidentado debate lembrei- me do seu internato, da caminhada do menino claro com a trouxa na ponta da vara; e do ministro no tílburi. Atireilhe o velho episódio. Não se deu por achado, mas visivelmente tonteou. Creio que se obedecesse ao primeiro impulso, e se eu não fosse seu filho, teria rido. Teríamos rido juntos. Mas há os segundos e terceiros impulsos. Com a intermediação de minha mãe de olhos secos e da Babá em prantos, celebramos um complicado pacto pelo qual eu sairia durante a semana para o dentista e levaria de casa um 23 reforço de comida, coisas tais como chocolate. Foi o tempo necessário para manter o moral paterno. Logo ao fim do ano deixei o internato e recuperei a liberdade, isto é, certo direito de vadiar solto em vez de vadiar preso; sobretudo, de ler à vontade e não apenas estudar nas horas de estudo como pretendia o Napoleão, chefe da disciplina, que chegou com seus pés inaudíveis e me tomou das mãos o livro Água de Juventa, de Coelho Neto, nunca mais lido nem sentido. Em todo caso, foi uma das razões pelas quais nunca cheguei a aprender a regra de três. Além de uma vaga suspeita de que a matemática tem algo que ver com a progressiva humilhação da espécie humana.

Capítulo I

CAPÍTULO I 

No país da infância 

Os olhos de um escritor para serem claros devem ser secos. 
Georges Darien 

Onde ficou aquele famoso livro, o romance essencial que me prometi deixar ao mundo antes de morrermos, o mundo e eu; o legado definitivo, inapagável sinal de minha presença, de tantas experiências acumuladas para nada a não ser o prazer ocasional de me sentir vivo? Eis chegado o tempo da descida, tão esperado e tão temido. As imagens se confundem, a memória despe-se da antiga preferência pela facilidade, o pitoresco e o brilhante. Ontem já se esfuma. Ressalta o antigamente. Aos poucos mergulho numa certa indiferença, até dilacerante, por tudo o que me prendia ao cada dia do mundo. Será preciso renunciar até ao patético? Lembro-me de um moço que a certa altura redigiu uma mensagem de amor, perturbadora na sua pieguice grandiloqüente; investido de missão messiânica cedeu ao convite da morte que o envolveu num rodopio de valsa antiga. De volta do abismo, entulhado de pesadelos, ele ainda falava muito. Mas o que dizia não tinha relação com seus olhos de tormento e pânico, que traziam em cintilantes cabeças de alfinete as imagens do terror que freqüentara. Hoje ressurgiu, descobriu a tolerante bondade, a felicidade do banal cotidiano. Mas, como esquecer tamanha angústia, as irrisórias tentativas de sair do vórtice? A espiral que engole a alma, como a moenda que tritura a cana, para libertarse. O esforço para retomar o nado largo e compassado das vidas conforme a regra, sufocante regra que atocha as pessoas e delas faz um feixe seco na lenta, incessante fogueira sem labaredas, de um fogo rampante, sub-reptício, após o qual nem cinzas restam, pois qualquer vento as dispersa. Desde que subi a montanha ouço lá fora um pássaro de primavera cujo canto se torna muito importante porque não desperdiça gorjeios e sabe quanto é falso dizer que os pássaros são livres. Ninguém é livre a não ser, talvez, as minhocas; em todo caso nem os vaga-lumes. Talvez as aves de rapina, mas dependem de encontrar a presa. Nunca os pássaros canoros, pois têm lugar definido no espaço; seu vôo é demarcado pela vigilância dos demais. Algo semelhante se dá até com os objetos. O automóvel, por exemplo, é tal qual esses passarinhos pousados nos fios elétricos e telefônicos, as patas metidas na conversa alheia, o corpo isolado da terra senão seria a eletrocução 10 desses retardatários mensageiros de florestas extintas pelo fogo e pelas escavadeiras que ocupam o espaço do homem por sua vez domado, dopado, sonado. O automóvel só anda onde fizeram a estrada. E leva entre seus vidros fechados uma carga de solidões que se amontoam. Depende da gasolina - e esta de um cisco no carburador. Bem pensado, afinal livre mesmo é o ser humano. "É o único produto da evolução que conseguiu dominá-la." Pode escolher. Ou poderia. Mas não dá à sua liberdade o tratamento que lhe deve. Peguei no sono de livro na mão e de repente me senti inaugurando uma loja na Avenida na presença de um estadista que nem conheci e as portas se abriram, a hora fatal do discurso que me deu sempre a sensação de ser um toureiro que se persigna antes de entrar na arena, as pessoas entram pelas portas que escancarei, o torpor se apossa de mim e nada mais quero senão dormir pelo sonho afora, na vaga esperança de não ter que acordar, nunca mais. Uma porta que se abre, a pessoa depara consigo mesma nos umbrais e de repente outra porta se escancara com estrépito e ninguém chega, ali não está ninguém, somente a porta que se abre sobre o nada, num rumor de águas que crescem, encachoeiradas, invasoras, de quarto em quarto até que a casa desce de bubuia na correnteza e vem a ser uma arca desarvorada e deserta. 11 Anoiteceu. O passarinho já não canta. Não posso me queixar de insônia, o que já seria uma proeza intelectual dessas que ilustram os eleitos da espécie. Durmo, simplesmente, sem remorso nem cuidado. A força que habitualmente me sustenta é que já não se sustenta. O ventre cresceu com um peso a que corresponde, na consciência, um recado feito de toques de silêncio sucessivamente mais altos. Repassam instantes revividos que desmascaram imensas mistificações das quais se vive, pelas quais se morre. Como a cabana sagrada dos índios no Suyá-Missú. Atarracados, nus e fortemente untados de urucum os selvagens se aprontam para a dança diante da dama francesa. Besuntam de amarelo, que depois passa a vermelho forte, o corpo grosso e os grandes membros roliços incircuncisos; cingem de colares e outras artes plumárias seus pescoços, os braços, os troncos pré-diabéticos. A dança poderia ser a qualquer momento pois ao Afrânio de Oliveira o índio disse daqui a pouco. Na língua deles que o Afrânio debulha com singular desenvoltura, menos por entendê-la do que por adivinhação afetuosa, daqui a pouco pode ser agorinha ou depois de algumas luas. Então pedimos que venham fazer somente um fingimento de dança para a dama fotografar. É aí que Lévi-Strauss, ausente na Europa por motivo de celebridade irremediável, leva um tombo que reboa com fragor na Amazônia devastada, já ocupada por 12 vegetação irrelevante e cobiça imprevidente. Do interior da cabana tabu, onde nenhum estranho poderia entrar, ali daquele santuário onde se processam os ritos milenares do homem primitivo, sai a exclamação do selvagem: 
- Okay! 

Se insistirmos ele fará como aquele velho cacique de uma tribo de índios do Pará que ameaçou, se o Prefeito Municipal não conseguisse que a mulher nova voltasse para a taba, queixar-se à Televisão Alemã. Na beira do Ganges, onde as crianças alegremente comem merda diluída na água misturada às cinzas dos cadáveres queimados na barranca, perante o Guru parado na posição da flor, sobre uma pedra que reflete o sol fulgurante da outra margem, o tempo parado, o segredo das almas, o rito do astro divino, o irreverente bacharel carioca me diz sumariamente: 
- O que aqui na índia eles chamam de guru é o que a gente lá em casa chama de maluco. 

Nos galopes verbais dos horóscopos, nas sortidas lunares do demonismo, no ódio que fermenta em corações estourados, o corpo é um baralho de cartomante, apenas a base física sobre a qual assentam adivinhações de promessas e tormentos. Há em tudo uma explosão de amor contida, proibida. Em cada um existe essa parte intocada, essa reserva que não vem sempre de aceitação e beatitude, mas 13 de sinais que uma vez recebidos imprimem caráter, deixam marcas definitivas - dessas que em vão se procura apagar mas reaparecem. Azuladas tatuagens da memória. Disto me lembro na paisagem das últimas neblinas e do primeiro pássaro que canta no verde constante dos pinheiros alpinos. É um bafo quente de infância que me vem da beira lamacenta do Paraíba, do maciço azul do céu, do destroçado perfil daquela casa, do vulto do meu Avô. Tenho pena dos que não tiveram um avô. Esses bem cedo ficam adultos. Assim, tardam muito a descobrir o país da infância.

Capítulo II

CAPÍTULO II  De repente na Pátria alheia  É com adolescentes que duram certo número de anos que a vida faz os velhos.  Marcel Proust Le Temp...