quinta-feira, 11 de maio de 2023

Capítulo I

CAPÍTULO I 

No país da infância 

Os olhos de um escritor para serem claros devem ser secos. 
Georges Darien 

Onde ficou aquele famoso livro, o romance essencial que me prometi deixar ao mundo antes de morrermos, o mundo e eu; o legado definitivo, inapagável sinal de minha presença, de tantas experiências acumuladas para nada a não ser o prazer ocasional de me sentir vivo? Eis chegado o tempo da descida, tão esperado e tão temido. As imagens se confundem, a memória despe-se da antiga preferência pela facilidade, o pitoresco e o brilhante. Ontem já se esfuma. Ressalta o antigamente. Aos poucos mergulho numa certa indiferença, até dilacerante, por tudo o que me prendia ao cada dia do mundo. Será preciso renunciar até ao patético? Lembro-me de um moço que a certa altura redigiu uma mensagem de amor, perturbadora na sua pieguice grandiloqüente; investido de missão messiânica cedeu ao convite da morte que o envolveu num rodopio de valsa antiga. De volta do abismo, entulhado de pesadelos, ele ainda falava muito. Mas o que dizia não tinha relação com seus olhos de tormento e pânico, que traziam em cintilantes cabeças de alfinete as imagens do terror que freqüentara. Hoje ressurgiu, descobriu a tolerante bondade, a felicidade do banal cotidiano. Mas, como esquecer tamanha angústia, as irrisórias tentativas de sair do vórtice? A espiral que engole a alma, como a moenda que tritura a cana, para libertarse. O esforço para retomar o nado largo e compassado das vidas conforme a regra, sufocante regra que atocha as pessoas e delas faz um feixe seco na lenta, incessante fogueira sem labaredas, de um fogo rampante, sub-reptício, após o qual nem cinzas restam, pois qualquer vento as dispersa. Desde que subi a montanha ouço lá fora um pássaro de primavera cujo canto se torna muito importante porque não desperdiça gorjeios e sabe quanto é falso dizer que os pássaros são livres. Ninguém é livre a não ser, talvez, as minhocas; em todo caso nem os vaga-lumes. Talvez as aves de rapina, mas dependem de encontrar a presa. Nunca os pássaros canoros, pois têm lugar definido no espaço; seu vôo é demarcado pela vigilância dos demais. Algo semelhante se dá até com os objetos. O automóvel, por exemplo, é tal qual esses passarinhos pousados nos fios elétricos e telefônicos, as patas metidas na conversa alheia, o corpo isolado da terra senão seria a eletrocução 10 desses retardatários mensageiros de florestas extintas pelo fogo e pelas escavadeiras que ocupam o espaço do homem por sua vez domado, dopado, sonado. O automóvel só anda onde fizeram a estrada. E leva entre seus vidros fechados uma carga de solidões que se amontoam. Depende da gasolina - e esta de um cisco no carburador. Bem pensado, afinal livre mesmo é o ser humano. "É o único produto da evolução que conseguiu dominá-la." Pode escolher. Ou poderia. Mas não dá à sua liberdade o tratamento que lhe deve. Peguei no sono de livro na mão e de repente me senti inaugurando uma loja na Avenida na presença de um estadista que nem conheci e as portas se abriram, a hora fatal do discurso que me deu sempre a sensação de ser um toureiro que se persigna antes de entrar na arena, as pessoas entram pelas portas que escancarei, o torpor se apossa de mim e nada mais quero senão dormir pelo sonho afora, na vaga esperança de não ter que acordar, nunca mais. Uma porta que se abre, a pessoa depara consigo mesma nos umbrais e de repente outra porta se escancara com estrépito e ninguém chega, ali não está ninguém, somente a porta que se abre sobre o nada, num rumor de águas que crescem, encachoeiradas, invasoras, de quarto em quarto até que a casa desce de bubuia na correnteza e vem a ser uma arca desarvorada e deserta. 11 Anoiteceu. O passarinho já não canta. Não posso me queixar de insônia, o que já seria uma proeza intelectual dessas que ilustram os eleitos da espécie. Durmo, simplesmente, sem remorso nem cuidado. A força que habitualmente me sustenta é que já não se sustenta. O ventre cresceu com um peso a que corresponde, na consciência, um recado feito de toques de silêncio sucessivamente mais altos. Repassam instantes revividos que desmascaram imensas mistificações das quais se vive, pelas quais se morre. Como a cabana sagrada dos índios no Suyá-Missú. Atarracados, nus e fortemente untados de urucum os selvagens se aprontam para a dança diante da dama francesa. Besuntam de amarelo, que depois passa a vermelho forte, o corpo grosso e os grandes membros roliços incircuncisos; cingem de colares e outras artes plumárias seus pescoços, os braços, os troncos pré-diabéticos. A dança poderia ser a qualquer momento pois ao Afrânio de Oliveira o índio disse daqui a pouco. Na língua deles que o Afrânio debulha com singular desenvoltura, menos por entendê-la do que por adivinhação afetuosa, daqui a pouco pode ser agorinha ou depois de algumas luas. Então pedimos que venham fazer somente um fingimento de dança para a dama fotografar. É aí que Lévi-Strauss, ausente na Europa por motivo de celebridade irremediável, leva um tombo que reboa com fragor na Amazônia devastada, já ocupada por 12 vegetação irrelevante e cobiça imprevidente. Do interior da cabana tabu, onde nenhum estranho poderia entrar, ali daquele santuário onde se processam os ritos milenares do homem primitivo, sai a exclamação do selvagem: 
- Okay! 

Se insistirmos ele fará como aquele velho cacique de uma tribo de índios do Pará que ameaçou, se o Prefeito Municipal não conseguisse que a mulher nova voltasse para a taba, queixar-se à Televisão Alemã. Na beira do Ganges, onde as crianças alegremente comem merda diluída na água misturada às cinzas dos cadáveres queimados na barranca, perante o Guru parado na posição da flor, sobre uma pedra que reflete o sol fulgurante da outra margem, o tempo parado, o segredo das almas, o rito do astro divino, o irreverente bacharel carioca me diz sumariamente: 
- O que aqui na índia eles chamam de guru é o que a gente lá em casa chama de maluco. 

Nos galopes verbais dos horóscopos, nas sortidas lunares do demonismo, no ódio que fermenta em corações estourados, o corpo é um baralho de cartomante, apenas a base física sobre a qual assentam adivinhações de promessas e tormentos. Há em tudo uma explosão de amor contida, proibida. Em cada um existe essa parte intocada, essa reserva que não vem sempre de aceitação e beatitude, mas 13 de sinais que uma vez recebidos imprimem caráter, deixam marcas definitivas - dessas que em vão se procura apagar mas reaparecem. Azuladas tatuagens da memória. Disto me lembro na paisagem das últimas neblinas e do primeiro pássaro que canta no verde constante dos pinheiros alpinos. É um bafo quente de infância que me vem da beira lamacenta do Paraíba, do maciço azul do céu, do destroçado perfil daquela casa, do vulto do meu Avô. Tenho pena dos que não tiveram um avô. Esses bem cedo ficam adultos. Assim, tardam muito a descobrir o país da infância.

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